A desnaturação do Tribunal Constitucional
- Carlos Dias

- 8 de jul.
- 4 min de leitura

O Brasil, uma nação de contrastes e desafios contínuos, vê-se, com frequência cada vez maior, diante de questionamentos sobre a própria essência de suas instituições. Um dos mais relevantes e inquietantes diz respeito ao Supremo Tribunal Federal (STF). O que, por designação constitucional, deveria ser o zeloso guardião da Carta Magna, parece ter, para muitos observadores, transmutado sua função, afastando-se do perfil de um legítimo Tribunal Constitucional para se assemelhar a um agrupamento de entes não eleitos a exercerem atribuições próprias de um poder de Estado com pendor executivo.
Essa percepção não é fruto de um devaneio, mas de uma análise atenta das ações e do modus operandi que têm pautado a mais alta Corte do país. Um Tribunal Constitucional possui uma vocação muito clara: interpretar a Constituição, dirimir conflitos de competência entre os poderes e as esferas federativas, e resguardar os direitos fundamentais. Sua autoridade emana da supremacia da Lei Maior e de sua imparcialidade técnica, não de um mandato popular ou da adesão a quaisquer agendas ideológicas ou políticas. Ele não foi concebido para governar, legislar ou administrar. Sua legitimidade reside, precisamente, em ser um árbitro neutro e previsível, alinhado à letra e ao espírito da Lei.
Contudo, o que se observa é uma progressiva e preocupante distorção dessa prerrogativa. Quando decisões judiciais se aprofundam na formulação de políticas públicas, determinando orçamentos, estabelecendo metas administrativas ou mesmo criando normas onde o Legislativo não atuou – ou atuou em sentido diverso –, o que antes era um tribunal se converte em um "legislador positivo" ou, o que é ainda mais grave, em um "administrador de fato". Esta é a gênese da percepção de que se tornou um "agrupamento de pessoas, não eleitas, que atuam com função executiva de Estado".
Tais atuações, muitas vezes justificadas sob o manto de um "interesse nacional" autoproclamado pelos próprios membros da Corte, sem o indispensável crivo do processo democrático representativo, provocam um desajuste significativo na balança de poder republicana. A tensão natural e saudável entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo – um mecanismo fundamental de freios e contrapesos que permite a autocorreção e a fiscalização mútua no sistema democrático – é profundamente abalada.
O Legislativo, representante direto da soberania popular, vê-se por vezes esvaziado de sua prerrogativa de debater e aprovar as leis que regem a vida em sociedade. O Executivo, responsável pela administração e implementação das políticas de governo, encontra-se frequentemente manietado por imposições que fogem à sua órbita de atuação, inclusive com impactos orçamentários consideráveis. Isso não apenas fragiliza a separação de poderes, mas também fragiliza a própria essência da democracia representativa.
Do ponto de vista econômico e da liberdade individual, essa intrusão do Judiciário em esferas alheias é particularmente desfavorável. Para aqueles que, como eu, compreendem os preceitos da Escola Austríaca de Economia, a previsibilidade jurídica e a ausência de intervenção estatal excessiva são condições essenciais para a prosperidade. Decisões judiciais que invadem o campo da política econômica, alteram marcos regulatórios ou definem pautas sociais sem amplo debate legislativo geram insegurança jurídica. Tal insegurança não apenas afugenta investimentos, mas também fragiliza a liberdade de mercado e a capacidade da iniciativa privada de prosperar.
O Estado de Direito é um delicado equilíbrio. A defesa da vida, desde a concepção até o término natural, a legítima defesa individual e a prerrogativa do cidadão de escolher sobre a posse e o porte de armas, a liberdade econômica com a ampla descentralização do poder estatal, as privatizações, a autonomia do Banco Central, e a manutenção de um limite aceitável na relação dívida/PIB, são pilares que dependem de um arcabouço legal estável e respeitado por todos os poderes. A exploração racional dos recursos naturais, como a da Amazônia, vista como um ambiente vital para ampliar a capacidade econômica e estratégica do Brasil, também se insere neste contexto de respeito aos limites.
Quando o Judiciário adota pautas políticas – seja na tentativa de legalizar ou flexibilizar o uso de substâncias entorpecentes ou em outras pautas que caberiam ao debate legislativo –, ele não apenas suplanta a vontade popular expressa nas urnas, mas também se arrisca a endossar práticas que representam uma afronta aos valores da sociedade. Essa conduta, por vezes, se assemelha a uma manifestação moderna do patrimonialismo que, historicamente, representa um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento do Brasil, extinguindo a meritocracia e a lisura da administração pública.
Para que o país possa avançar, é de caráter fundamental que cada poder retorne às suas atribuições constitucionais. O STF deve reassumir seu papel de árbitro sereno e imparcial, de guardião da Constituição, abstendo-se de se imiscuir nas funções de legislar ou de governar. Apenas com o restabelecimento da harmonia entre os poderes e o respeito aos seus limites é que as instituições democráticas se fortalecerão, garantindo que a liberdade, a propriedade e a ordem prosperem de maneira consistente e previsível para todos os cidadãos. O desvio de função da mais alta Corte representa um forte desafio à República, e sua correção é um passo essencial para o futuro do país.



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